Conheça um pouco da trajetória de Yuri Garfunkel: músico, desenhista, violeiro, quadrinista e, sobretudo, um matuto da cidade
No prefácio do gibi “A Viola Encarnada: moda de viola em quadrinhos” está escrito: “O intuito desse trabalho é homenagear os autores dessa cultura popular através da linguagem da arte sequencial, no desejo de que por meio do entrecruzamento do desenho com a música possam emergir imagens que dialoguem com a memória coletiva das culturas dessas canções”.
É difícil pensar numa pessoa mais capacitada para orquestrar essa harmoniosa mistura entre música e quadrinhos do que Yuri Garfunkel. As experiências com a música e o desenho estiveram presentes em sua vida desde a primeira infância. Ele é filho de Paulo e sobrinho de Jean Garfunkel, compositores respeitados, que gravaram discos autorais, se destacaram em festivais pelo Brasil e tiveram suas canções gravadas por artistas como Elis Regina, Zizi Possi e Maria Rita, entre outros. Os irmãos também são responsáveis por inúmeras trilhas sonoras, jingles e trabalham até hoje com produção musical. Como instrumentista, Paulo acompanhou grandes nomes da música brasileira como Ney Matogrosso, Rita Lee e Elis Regina.
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Além do convívio intenso com gente do meio musical, ainda na infância Yuri descobriu o rock que marcava uma forte presença nas rádios paulistanas na década de 1990. Logo vieram as primeiras aulas de violão e guitarra e as primeiras bandas com os amigos da escola. A paixão por desenhar já estava lá. E logo foi reforçada pelo contato com alguns clássicos dos quadrinhos, como Asterix, Príncipe Valente, Tintim e outros, apresentados por seu pai. Paulo Garfunkel é também roteirista de histórias em quadrinhos feitas, principalmente, em parceria com o desenhista Líbero Malavoglia, como as do personagem “O Vira-Lata”, trabalho que lhe valeu o Troféu HQ Mix de 1998 como melhor roteirista nacional. Também entre os gibis da coleção do pai, Yuri descobriu as charges do recém-falecido Quino, que viria a ser uma de suas maiores influências. “Eu era uma criança muito introspectiva, lia muito e desenhava bastante. A música, por meio do rock, teve a função de me tornar mais sociável”.
Após uma experiência trabalhando na trilha sonora de uma peça de Ariano Suassuna, ainda nos tempos de colégio, Yuri tornou-se um ouvinte mais eclético. A música nordestina (do Movimento Armorial ao Mangue Beat) e o rock progressivo entraram de vez no radar do jovem guitarrista e desenhista, que por essa época também se descobriu flautista. E seguiu nas descobertas: “Quando percebi que meu gosto musical era eclético, eu não tive mais limites. Comecei a ter amigos na periferia da cidade, conheci e comecei a ouvir muito rap e passei a sempre querer conhecer um pouco mais da música dos lugares onde eu estava ou frequentava”.
Por sua vez, o papel e as tintas nunca estiveram distantes. Sua primeira experiência profissional nesse campo foi bastante significativa: Yuri foi convidado por Líbero Malavoglia para trabalhar com ele na produção do storyboard (série de ilustrações feitas para permitir a pré-visualização de um filme) para o longa metragem “Desmundo”, de Alain Fresnot. Depois de uma temporada morando na Alemanha, Yuri voltou para o Brasil determinado a fazer carreira como desenhista e foi cursar Artes Plásticas na Faculdade Paulista de Artes.
Nos tempos de faculdade, participou algumas vezes da Semana Roseana, evento de turismo cultural que celebra a obra do escritor Guimarães Rosa, nas cidades de Cordisburgo, Morro da Garça e Andrequicé, em Minas Gerais. Com uma programação que envolve palestras, apresentações musicais e teatrais, exposição de artes plásticas, feiras gastronômica e de artesanato, o evento recebe pesquisadores, estudiosos e aficionados pelo universo do grande escritor mineiro vindos de todo o Brasil e até do exterior. Numa dessas ocasiões, fez o cenário para o show “O Sertão na Canção”, com músicas inéditas dos irmãos Jean e Paul Garfunkel, inspiradas no livro clássico “O Grande Sertão: Veredas”. Embora urbanos, mesmo antes do trabalho com a obra de Guimarães Rosa, Jean e Paulo com frequência abordavam o universo rural em suas canções, como na belíssima “Mazzarópi”, gravada por Pena Branca e Xavantinho, homenagem ao cômico que se tornou um ícone caipira graças ao imenso sucesso de seus filmes.
As visitas ao interior de Minas adicionaram mais uma paixão aos diversos interesses culturais de Yuri. “Já conhecia a música de Pena Branca e Xavantinho e alguns outros músicos mais regionais. Mas quando visitei essa região, vi que o que eu conhecia era pouco. Eu queria entender melhor sobre aquele chão e sua trilha sonora. Ali vi a folia do Divino e conheci violeiros. Foi muito rico, fiquei tão fascinado por aquilo que nem ia assistir às palestras, preferia conversar com as pessoas, tomar uma cachaça com elas, botar o pé na terra”.
Reafirmando o ecletismo dos seus gostos e a variedade dos seus interesses, quase no mesmo momento em que Yuri descobre e se encanta com a obra de Tião Carreiro ele também passa a integrar como flautista o Movimento Frigazz de Música Espontânea e o grupo de jazz rock instrumental Kaoll. Depois de mais um período trabalhando como assistente de Malavoglia, principalmente na produção de storyboards, criou o estúdio SOPA Art Br em parceria com Bruno Mestriner, seu colega dos tempos de escola e parceiro nos primeiros grupos musicais.
Privilegiando a união de linguagens artísticas, o SOPA criou uma estética própria aplicada em diversas áreas das artes visuais (historia em quadrinhos, ilustração, design e arte urbana) e música instrumental. A união dessas áreas de atuação resultou em muitos trabalhos, oficinas e exposições sinestésicas de arte e música urbana no Brasil, na Itália e na Argentina. Em 2016, o SOPA realizou sua terceira exposição interativa de arte urbana, narrando em linguagem de HQ a história do samba, num evento que celebrou o Centenário do Samba, realizado na Avenida Paulista.
Yuri investiu em explorar a viola e a aprender e tocar cada vez mais música caipira com seu amigo de longa data Mathias Zae, que já vinha estudando e trabalhando com esse repertório. A parceria resultou no Pequeno Sertão, grupo de música autoral formado com a proposta de resgatar a tradição e a sonoridade das violas. Yuri também passou a introduzir o som da viola caipira no trabalho com o grupo Kaoll. Fez cursos intensivos do instrumento com mestres como Ricardo Vignini, Índio Cachoeira, Levi Ramiro e Zé Helder. “Acabei abraçando e entrando mesmo na pesquisa da música caipira. Passei a respirar essa cultura e a estudá-la muito. Hoje, praticamente, não toco mais flauta. Virei violeiro”.
A inquietação e a sensibilidade do artista Yuri Garfunkel acabaram resultando no bem sucedido encontro de linguagens de “A Viola Encarnada”. É impossível prever os rumos que sua arte trilhará no futuro. Mas, encantado pelo som mágico das dez cordas, ele aposta que, seja qual for o caminho, a viola caipira segue junto. “Na verdade eu sempre senti que em algum momento eu iria cansar dessa urbanidade. Meu lance sempre foi um pouco o de ficar quieto no meu canto. Tem muito a ver com a minha forma de ver o mundo. Acho que ao ter contato com esse universo caipira eu encontrei minhas raízes. Quando pego a viola na mão eu sinto que não vou mais sair dessa”.
Por Sergio Santa Rosa